Eu Deusa

quinta-feira, março 22, 2007

Temos fome de quê?

A força da oralidade, da alimentação, da nutrição e suas muitas significações.

Ao encarar este tema, é necessário um esforço para manter-me constantemente alerta quanto à interação entre o consciente e inconsciente, entre o físico e o psíquico, entre o literal e o metafórico, mas acima de tudo tentar desvendar o que a psique tem a dizer valendo-me da experiência clínica, das associações possíveis, da cultura, dos costumes e dos muitos significados carregados pela linguagem.

Devemos considerar que a sociedade contemporânea ocidental está marcada historicamente pela escassez e incerteza de provisões e que esta marca constitutiva de nossa organização social continua presente em algumas partes do mundo e nos setores mais empobrecidos de nossa sociedade.

É muito difícil não pensar em alimento quando se está constantemente faminto ou ameaçado pela fome. Isto nos remete com grande facilidade a marca inicial do nosso desamparo. Dependemos essencialmente do outro para receber o “ alimento” que garanta nossa sobrevivência. Dependemos do outro para alimentar-nos. Para nos constituir.

E certamente, aqui reside a pedra fundamental que traduz nossa condição de humanos.

(*) minha opção neste momento é ressaltar as marcas históricas desta questão em nossa constituição subjetiva. Naturalmente, aqui também se encontra o caminho para refletir sobre a contemporaneidade de nossa organização social de consumo que coloca a questão de um “ideal de corpo” dificilmente alcançado que remete a uma discussão do “ter” do “ser” e do “parecer”.


Mas, a salvo de uma escassez de alimentos imposta por fatores externos, estamos mais livres do que nunca para projetar nos alimentos significados que nada têm a ver com mitigar necessidades orgânicas, buscando com isso, através do comer (ou do não comer), satisfazer necessidades afetivas, sexuais, dissimular raivas e dores, tentar preencher vazios insuportáveis ou ainda depositar nos alimentos nossos medos secretos e nossas fantasias de uma saúde perfeita.

Comer, ser comido, alimentar-se do outro, devorar, engolir, abocanhar, empanturrar-se, tragar, por goela baixo, ruminar, mastigar, roer, nutrir, lamber, saciar, atacar, jejuar, morder o fruto proibido, ansiar, vomitar.....

Um verdadeiro “ banquete” de significados podemos associar a estas palavras...

Quando a psique fala, sabemos que não é na dimensão da literalidade.

O processo literal da alimentação carrega inumeráveis significações simbólicas e incontáveis atributos metafóricos.

“ somos aquilo que comemos ” afirmava Ludwig Feurbac expressivo filósofo alemão do século XIX.

Na literalidade, podemos pensar que talvez o modo mais agressivo de nos relacionarmos com o que não sou “ eu ”, impondo-lhe completamente a nossa vontade, seja come-lo.

Neste processo, é destruída a integridade do “ outro” ; ele é desmembrado mecanicamente e repartido no nível químico em moléculas progressivamente menores, através da ação de enzimas excretadas pelas glândulas salivares, pelo estômago, pâncreas e intestinos. Digerimos, e assim assimilamos o “ outro” que é convertido em nosso próprio corpo. E algo que sobra será dejeto, descartado.

Freud lembra-nos dos canibais. A antropologia tem uma extensa reflexão acerca da literalidade e do simbólico da ação canibalesca e passeia em diferenciações muito interessantes entre o endocanibalismo e o exocanibalismo. Vale a viagem. Neste momento, tomo de empréstimo da antropologia só a consigna de que o canibalismo significa na maioria das vezes, a possibilidade de incorporar o inimigo como forma de herdar sua coragem, seus valores, seus atributos. Só eram devorados os que eram admirados. E quando se tratava de “ incorporar” os familiares tinha também um significado de provar o respeito e o afeto. Um ato de admiração, em nome do amor.

Poderia ir mais longe quando me lembro de um livro intitulado “ Moqueca de maridos”. Trata-se dos mitos eróticos reunidos pela antropóloga Betty Mindlin usando narradores indígenas. Sua extensa pesquisa (também em trabalhos anteriores), é marcada pelo empenho de traduzir a riqueza simbólica das mitologias das pequenas sociedades da mata brasileira. Entre os requintes de crueldade que os mitos indígenas encenam, destacam-se em particular as várias modalidades de antropofagia, tema central da obra tanto pela recorrência quanto pela singularidade de seu imaginário. Aparece em diversos mitos “ a cabeça voraz”.

Uma das versões, conta a história de uma mulher casada cuja cabeça separa-se do corpo todas as noites, à procura de carne e alimento, enquanto o que resta dela permanece abraçado ao marido. Uma cabeça insaciável. No imaginário indígena, o motivo capital surge para realçar a vitalidade física de um órgão.

Que se torna autônomo para melhor satisfazer sua ânsia de devoração. Trata-se de uma cabeça erotizada, que só obedece aos impulsos da sensualidade. A devoração é uma metáfora erótica de intensa significação. A mitologia indígena associa com freqüência o ato de comer ao ato de copular.

“Enquanto namorava ia comendo a mocinha” diz com assustadora simplicidade um mito Tupari relatado neste livro reiterando as afinidades entre o apetite sexual e a gula alimentar.

Nestas lembranças me aproximo de uma fantasia universal de que comendo, adquirimos as características de nosso alimento. E continuamos, indefinidamente como nos ensina Freud, perseguindo incansavelmente o plus de prazer obtido desde as primeiras mamadas. Fome de leite, prazer e psiquismo (Winicott)....

Conversando com a Deusa:

1 Conversando com a Deusa:

At março 22, 2007 4:59 PM, Blogger Elaine Regiani said...

Oi Tata...
Estava sentindo sua falta por aqui...
Muito bom este seu post, onde avaliamos todos os aspectos do comer. Gostaria mesmo de saber o que Freud explica em termos de alimentação e o prazer de comer.
No meu caso, eu percebi que a minha dificuldade em impor limites as pessoas, situações, acaba fazendo tb com que eu "perca" os limites do meu corpo...Acabo comendo mais q o necessário. mas. como já detectei este mal, estou já mudando hábitos e comportamentos.
Um super beijo

 

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